terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Insana

Havia uma confusão onde águas passadas teimavam em voltar abrindo espaço pelo fluxo que em frente seguia. Vejo essa turbulência e a areia em meus pés, vejo nuvens carregadas chegando e o tronco caído sob as pedras, mas quando escrevo as vivências vão deixando de ser meras memórias. São histórias. Histórias de onde andei, do povo que vi. Histórias de um tempo antes de tudo, do meu tempo. A alma é essa tinta poderosa, sem mata borrão. Talvez um dia eu entenda o que significam essas coisas que por impulso escrevo. Mas sei que não preciso, é só meu jeito de deixar-me fluir, continua, dinâmica, única forma de externar esse mundo que é tão meu. Olho além de tudo, enxergo histórias. São as histórias que movem o mundo, histórias sem nome, contos inexpressivos.  As histórias esculpem vidas, vidas tubulosas onde há sempre águas que teimam em não passar e dentro de todas as histórias têm a que mais vale a pena contar. A de amor. Embora a dor traga inspiração. E é preciso se afastar para escrever enquanto outros vivem. Essa é a dor e alegria de ser poeta. Sinto, logo escrevo. Escrevo, logo sinto. E sou ponte, sou abismo, sou essas águas barrentas que desejam te levar, águas sem fim, sou cíclica, e confundo minhas lembranças com minhas invenções. Embora tudo a gente invente. Embora quando escrevemos estejamos vivendo tudo, todas as sensações. Com esse coração esferográfico posso tudo, sou tudo e nessas linhas posso viver, posso existir. Se tudo incluir razão. Sinto a vida tão forte, latente, em ocasiões efêmeras, em cafés quentes que fumegam o peito, em abraços sem pressa, em águas geladas. E tenho meus pessimismos e minhas faltas de crenças, tenho minhas iras e meus medos, sofro, escrevo. Aprendi a ser dessa forma, as palavras me mantêm viva e quente, as palavras me mantêm distante e fria, as palavras me mantêm, ébria, insana, desarvorada. Sou palavras erradas, fujo da semântica, sou neologismos, sou despontuada. E tudo o que vejo que sinto que vivo, refaço em palavras. Minha forma de enxergar o mundo. Estive a escutar murmúrios entre as pedras, estive a seguir letras pelas trilhas, estive a misturar-me com o calor desse chão, estive. E sem freios vou-me embora. Pego carona em dedos calejados e fundo-me a essas histórias, louca por dar vida aos versos.  E quando vomito essas trovas percebo que estou viva, mesmo contra a minha vontade e meus olhos redondos são máquinas ligadas aos meus dedos, transvejo. Na morte nos colocam e capa de madeira, livro fechado. Escolhi essa semi vida de quem vive de fora, de quem inventa a vida. Sou inteira assim. Cama, arsenal de histórias, de memórias, de saudades. E rogo para que chova, chova e torne minhas águas caudalosas, chova e faça nossos rios se encontrarem, formando um único volume. Saio da roda para vê-la girar. Semeio a vida com letras atiradas, colho versos maduros de uma história verde, saboreio a cica em minha boca. Se faço certo ou não isso também é uma parte, de mim. Se vai dar certo ou não eu me quero como parte, de ti. Enjôo com palavras polidas, palavras sem vida. Não finja nada. Venha com sues risos e horrores, venha que juntos alinhamos nossos trechos. Não um novo parágrafo nem sequer um aposto nada para nos separar nada de vírgulas. Tu és a ideia de continuidade das minhas reticências, és meus períodos despontuados e infindos, és meu.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Nada

Entre melindres e meandros, enlouqueço. E estremeço em recantos enquanto nossos tempos convergem, se confundem. Me arrependo de ter me arrependido. Chove. Choro. Suspiro. Me viro. Não piro. I’m not gonna crack. E apesar de tudo ele ainda estava lá. Mesmo que não devesse. Que devesse abandonar. Ele ainda estava lá. E isso me apertava mais que tudo. Me assola então uma vontade, um impulso, sôfrego desespero, uivo, de querer estar lá também. Estar aí. Num acaso sucumbir às tuas cores. Vou me fundir. Tem um rio na minha boca. Ele corre para ti. Meu corpo desperta, aperta, tenho a consciência de cada milímetro dele. Ofegante. Não é mais uma máxima de amor, nem de dor. É porra nenhuma. Sou só eu. Sem berço, sem chão. E é tanto amor que me confundo. E, confesso, me acabrunho um pouquinho. Essas miudezas. Detalhes. E levanta meu queixo com a ponto dos dedos. Firmes. Suaves. Gelados. E assim me ergo e me inundo em você. De você. Me afogo, perco o foco. Sufoco. Estrangulo o silêncio. Não solto. Me aperta. Faz-me sentir pequena. Leve-me para. Lugar nenhum. Rios sem cursos. Discurso. Corro nesse percurso. Você. E brinca com meus cachos, me toma em seus braços e assim rio com sons que não são meus. Mas não acredite, descubra a minha farsa, me desnude. Não se afaste para que eu não veja minha culpa. Não me abandone nesse circuito sombrio somente com meu sangue frio e átrios vazios. Mas não me psicanalise. Não me entenda. Só ame. Só cuide. Cuide de minhas feridas abertas enquanto eu vinha para ti. E vim. Vim sem dor. Sem cheiro. Sem cor. Vim meio bamba, meio de lado. Vim correndo e me atirei em braços vazios.  Vim com meus gritos propagados no silêncio. Entoando sinfonias mudas. Foi quando olhei pela janela e vi que não era dia. Nem noite. Era Nada. Foi então que percebi que não havia ninguém. E não havia amor, nem dor. Mentira. Não estava claro nem escuro naquele dia sem dia. E assim me distanciei. Não olhe pra trás. Não olhe pra dentro. Não me espie. Mas esqueça tudo e me desarme. Só venha se molhar nessa minha chuva. Deixe-se ficar assim, todo encharcado de mim.

Para ti

...nessas minhas valas de cera comida me perco, me encontro, bato em esquinas corroídas, em triângulos imperfeitos, guerra, rôo minhas unhas de pitanga madura, cuspo os restos no chão, meus restos, seu chão, reconstrua-me, escrevo por cima de outros rostos, outros restos, pedaços derretidos, um novo inteiro, nessas pedras que formam meu percurso, que me deformam, e sigo assim, sem curso, fujo, peão vadio nesse tabuleiro perdido, num outro tempo, sem tempo, meu, nosso tempo, andarilho em terras não minhas, mas que tomo, e batizo, em nome do norte, do sul, do leste e do oeste, talho novas lembranças, novo passado, em notas dissonantes, acordes novos em tua escala, e te escalo, com meu batalhão de ponte, ataque relâmpago, cortando toda dor com machado frio, cantando meus desprazeres como flor, cachorro bandido perambulando por ruas iguais, poeta prisioneiro de seus próprios versos, sempre em busca, por entre atalhos e desvios,  quando todo o tempo ainda é pouco, quando cada passo parece o último, quando todas as fantasias se convertem em memórias e bato em portas coloridas a procura de tuas tintas, a procura de uma vertente, de um afluente, escorrego por pedras lisas, habito tua ilha, quebro teus muros antigos, desvendo teus símbolos, te tomo como fruta vermelha, te colho, te devoro, e te arrasto nesses labirintos, te perco nesse terreno íngreme, em mim, te moldo com meu barro molhado, te transpasso com todo o meu amor, te reviro, te destilo nesses alambiques vazios, te afogo em minhas rodas d’água,  te salpico com minhas estrelas órfãs, te desejo no inverso dos dias, e espero, e caço, caço uma corrente que me arraste até seu leito, esperando brotar em tua nascente, esperando te encontrar nessas ruelas onde me confundo, e me ato, nesses atos tão despidos de sentido,  nesses atos onde nos despimos sem precisar de nenhum sentido, onde entrelaçamo-nos liquefeitos até uma foz em comum, até meus pés cansados darem nalguma trilha que me permita te alcançar, até meus calos seguirem trilhos de ferrugem em busca de tua fumaça, até minha voz cantar a tua, até o azul se tornar negro, o negro, amarelo, e o amarelo desaguar novamente nessas tuas piscinas azuis, onde mais uma vez mergulho, e afundo, e insurjo, e de novo imirjo, tomada assim por tuas luzes, procurando não achar, seguindo algum fluxo que me leve para qualquer lugar, para lugar nenhum, para o meu lugar, para ti...

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Tão meu

Ela olhou pra minha garrafa e riu. Olhou e riu pra vodka que escorria pela minha boca meio aberta. Vem me tomar eu disse com os olhos. E veio. Veio trôpega, veio risos, veio rosa. A escuridão da praia derramava uma penumbra sobre aquele corpo tão igual ao meu. Ofereci a garrafa. Bebeu. Olhou pra mim. Bebeu mais.  Me estendeu a garrafa de volta. Disse que não era aquilo que desejava beber. Sacie-se eu disse. E veio. Veio volúvel, veio voraz, veio pulsos. E me tomou com seu gosto quente. Me virou de uma só vez e desci por sua garganta como fogo. Beba-me eu disse. E cresceu. Beba-me ela disse. E cresci. E fomos. Fomos gigantes, fomos sedentas, fomos em chamas. Tudo em volta era minúsculo e nós duas, como um enorme animal, enroscadas na areia, na areia dourada de nossos desertos, deserto que encobríamos naqueles corpos tão iguais. E seu cabelo caía sobre mim. Em cima. E eu fitava ela. Em baixo. Ela estava em todos os lados, dentro. Ela era eu e eu era ela e eu era nada. Eu era só um deserto de novo. Imersa em meus vazios. Cheia de solidões. Vem nadar em mim. Gritei pro alto, gritei pra frente. Mas só o nada ouviu. E veio. Veio absoluto, veio opressor, veio frio. Congelou minhas chamas. E abracei minha dor. Única companhia nessas indecisões. Nessas transformações inquietantes, nesses cilindros de revolução, nessas quelóides escuras. Não procuro um amor, mas uma distração. Algo para esquecer essas feridas. Algo mais leve, mais brando, sem prés, sem prós, sem contras. Sem amarras. E veio. Veio solitário, veio encantador, veio mistérios. E esqueci meus requisitos e o enlacei e apertei as amarras. Sem querer era amor. Sem querer quis mais que tudo o querer para sempre. Sem querer uni minha solidão a dele e descobri que podia ser inteira também, que podia fazer desses pontos retas infinitas, traçar uma ponte ligando o nada ao tudo, não ligando nada a nada, talvez eu a ele. Talvez só esses nossos pontos doídos, essas nossas rotas destroçadas. Mas enquanto nada se ajeita vou assim me ajeitando nele. E quem sabe um dia passe, um dia acabe e o sonho fique. E quem sabe nada passe e o dia nunca acabe e o sonho nunca termine de se construir. Quem sabe ele não vem e me faz parar de pensar e começar a viver essas pontes e pontos. E veio. Veio amores, veio abraços, veio meu.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Lumos maxima

...e brilhamos, sem saída, sem entrada, perdidos, partidos, fora de tudo, dentro de nosso próprio mundo, dentro de mim, dentro de nós, não saia, não me solte, devore o que é seu, deixe-me mergulhar nessas suas piscinas azuis, deságua em mim, desemboque em meu açude, me transborde, me tome, não há mais ninguém, anacrônicos, isso só existe em nós, para nós, nosso encanto, nosso segredo, sinta o barulho de nossos corpos soltos no tempo, no atemporal, ouça o vento nessa pele que agora é nossa, uma só, um só, só nós dois, teime comigo quando eu fugir, me aperte mais se eu quiser soltar, me mostre algo novo, embrenhe-se por minhas trilhas, deixe-se levar por minhas armadilhas, caia na minha corrente e então te arrasto, te atraio com meus passos, te levo, te amo, te devoro com meus sorrisos que saltam dos olhos, te tomo direto no gargalo, deixa o sol levar a gente, vem comigo por esse mar de versos mortos, por esses poemas despedaçados, venha ver como eu te imprimi em tinta só para impregnar-me mais de ti, olha que Apolo já vai lá longe, olha que o azul está rubro, olha que vejo as cores nesse teu rosto queimado, olha o quadro que vai se formando, as nuvens como efêmeros riscos como que postos ali por acaso, o laranja-rosado que vai deixando espaço para o breu, olha o resto de luz que nos acende, olha que nesse escuro não consigo olhar você e então somos novamente formas e sombras, tateando cegos por um rio de sentidos, sem sentido, montando as lufadas desse ar traiçoeiro, atirando com facas em tudo o que não tenha nós, enlouquecendo nessa pista onde o inverso é tão belo, e te miro com meus olhos redondos, te espio de cima, de baixo, de dentro, te espio e pio em teus ouvidos coisas inintendíveis, grunhidos para a noite, para o deserto, e confundo teu corpo com o meu e perco meu corpo no seu e caço tuas mãos e as enlaço com as minhas, nosso segredo, nosso sagrado, nosso templo, nossa magia, beirando o surreal, como um sonho flutuante, esperando a hora de acordar, esperando não ter que acordar, sem esperar nada, sem esperanças, içamos as ancoras, a deriva, meu bem, naufragados nessa ilha sem amor, sozinhos nessa ilha, só com nosso amor, chicoteando o desejo na areia branca, encardindo nossos pés nesse barro sujo, esculpindo-nos como uma coisa só, te derramo numa xícara como líquido bem quente, te sorvo bem devagar, submerjo nas tuas águas bem lentamente, e toda a dor some, tudo o mais se encaixa quando eu me encaixo em você, todo o resto se ajeita quando você se ajeita em mim, tudo some quando sumimos um no outro, nada mais importa quando só o que importa são nossos dedos impacientes percorrendo cada curva desse emaranhando em que nos transformamos, emanando por cada poro nossas solidões, unindo-as, formando um inteiro, nosso complexo, nossas brumas, nossos pratos que esvaziamos famintos, e me pergunto se tudo aconteceu realmente, me pergunto se tudo seria da mesma forma se fosse repetido, me pergunto quantas vezes mais eu o amaria, me pergunto quando o para sempre vai começar, quando tudo vai descolorir, quando vamos decair e ficar depositados no fundo do copo, resquícios do que fôramos, do que somos, do que seremos, eternamente sobre essa abóboda felpuda que nos cobre, eternamente sobre esse cobertor azul clarinho onde rolamos como um só, eternamente nesse tempo que não é tempo, mas já é sem tempo de irmos em busca de um outro tempo, onde já não se conte mais o tempo, onde só haja tempo pra gente se amar, onde só haja você e eu, onde possamos inventar nossos sonhos, colorir nossos olhos com as tintas um do outro, esquecer de tudo, lembrar de tudo, olhar cada detalhe sem se preocupar, sem espaços entre nós para se preencher, sem nada para nos pressionar, apenas nós, apenas nossos cantos, nossos acordes, nossos risos, nossos passos, apenas nós e o vento e o céu e o mar, apenas nós nesse recanto, nesse encanto, sem pensar, sem nada que nos faça franzir a testa, apenas rugas nos cantos dos olhos, apenas bochechas coradas e conchas grudadas no suor, apenas tua nascente abrindo caminho por minha terra, fluindo em mim, me inundando, tornando-me inteiramente seu curso, seu mundo, seu tudo, seu, sua, meu, nosso, com nada, sem tudo, só você mergulhado em meu posso, só você estendido em mim nessas margens, marcando a areia molhada com nossa forma, nos salgando para depois nos beber, só você e eu, enquanto o caminho dourado cai em nós, enquanto tudo cai em volta de nós, enquanto o sorriso do gato se abre para nós, e o pasto surge, e tudo o mais some, e o mar fica reluzente e nos banha com sua ponte de luz, mostrando a mim tua pele translúcida, minha pele de ouro, e enquanto todo o resto se apaga, nós brilhamos...

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Limiar

Gosto de pensar que sou para sempre o último dia de inverno. Meu contentamento começa no solstício. Frio que favorece orgias. Adoro meus deuses gelados, desperto minha fé fria e crua retalhando essa minhalma efêmera.  Assim caminho entre meus restos escuros, com meus impulsos e exageros, pautada por dramas. Sempre rumo ao equinócio, sempre no limiar, mas nunca além. Meus dedos roxos apertam xícaras quentes contra minha alma fria, agora são dedos quentes que passeiam por mim, pequena flor fraca e nua esquecida no gelo. Estremeço com esse intruso em minha solidão, não se preocupe com minhas feridas abertas a mostra nesse corpo despido de máscaras e falsas alegrias, deixo no chão meus rosto e restos e danço e me enrosco, me revirando nessas chamas brancas. Para sempre o último dia de inverno, para sempre dançando esse balé frenético de corpos em um só calor. Um só. Mas a verdade é que me acostumei ao vazio e encher essas minhas talhas já tão ressecadas dói demais, percebo-me então partida, meus destroços geometricamente espalhados no teto, me espreitando. E novamente vem o intruso, desaguando em mim mais do que queria beber, despertando em mim uma sede que beira, não, ultrapassa o desespero, assim me parto mais uma vez rumo a tua voz, te sorvo e te quebro só para fazê-lo caber todinho em mim. E imploro para que me sorva e me quebre só para fazer-me caber todinha em ti. Somos só espectros, só lendas perdidas em ruínas de pó, lendas  talhadas em borra, lendas sussurradas no escuro enquanto o frio ferve e já não temos nada, só a palpável voracidade com a qual nos tomamos, competindo com os ponteiros, fugindo de tudo, só nós dois. Desconsiderando tudo o que há em mim, dou de cabeça nessas construções sem esquinas, nesses becos sem saída, afugento-me nessa crisálida apertada, mas fugindo das vespas não vejo o botão que se abriu. Metamorfoseio-me então, retraio todos os meus pedaços até formar um só, até não sobrar nenhum, mórula inversa. Pelo medo do excesso peco pela falta. As cores começam a apontar no jardim, mas estou presa aqui, na véspera, nunca adiante, nunca transpasso, não sigo em frente, fantasma. Aprisionei-me em meus laços, em meus nós, em nós. Rastejo então sozinha e cega bato em tua carapaça, te rompo. E longe das armaduras somos só corpos moles e sensíveis em cada seguimento. Ainda falta-me uma parte. Não metades, não laranjas, mas sim uma peça desse confuso jogo que me forma. Ignorando meus medos convido-o a entrar nessa roda, em minha roda. Beba-me. Sofra essa última taça bem devagar. Sacie-se em mim. Invada meu inverno e espero comigo, espere que um dia chega, espera que plantei aquela coisa verde, como se chama? Espera que ela floresce, espera que a gente floresce também. Enquanto isso me inteire nesses leitos secos, nessas margens pobres, nesses versos sem rumo. Enquanto isso se some a mim, não temos sentido nem direção, mas se perca em mim, vetor sem nexo. Vem pra dentro (de mim) que o fim do inverno começou.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ecdise

Partindo de um concreto abstrato nesses falsos vazios, falsas, alegrias, falsos abismos. Virei a vida. Desceu rasgando. Nessa falta de esperança, falta de fé. Sem sonhos apalpo a dor, com um desejo famigerado. Mas abraço essa ferida, companheira solitária das noites insones com dedos vazios, quando as sombras espreitam pelo caixilho aberto. E me reviro repetindo um velho mantra e minto e me engano quando digo que sou forte. Atiro contra mim nessa raiva, frenesi. Nego. Reluto. Canso. Sou teus pontos. Sou essa continuidade. Sou extinção. Letargia. Seu casaco. Seu cheiro. Quero te arrancar de mim, te puxar pra fora só pra te abraçar e entrar em ti. Schistosoma mansoni. Quero te sentir cada vez mais perto. Dentro. Sou esses calos. Sou espinhos. Sou tuas mãos. Nelas estou. Sou. Não. Não sou. Não tenho. Não fui. Por isso me quebre. Me atravesse. Me desmantele. Mas novamente te empurro, te repilo, sem largar tua mão e continuo a gritar cada vez mais baixo com meus lábios imóveis e olhos suplicantes. Um vai-embora-que-quer-dizer-não-me-solta-não.  Até onde eu sei nada sei. Embarquei. Andei até aqui. E eu que nunca tive nada, que nunca fora nada e que ainda nada sou. Andei e vi o nada e esse nada que no mundo nada em mim se instalou. Eu que nunca tive nada sinto estar perdendo tudo. E isso de ter medo é tão natural. O desespero é palpável. Mas troquemos a música que eu preciso de um som triste, uma lembrança fresca e vamos ser poetas. Que desgraça é essa de precisar transcrever a alma em tinta. Eu sou esse medo. Sou esse nada. Meu desejo é. Mas me acostumei ao frio. Assim fujo, e volto viciada, de bode, e percorro teus caminhos, tão meus conhecidos, querendo te sentir mais uma vez, só mais uma, só mais essa dose. Prudência não é o que eu escolheria tomar agora. Quero mesmo é não mais me achar. Gosto de me encontrar assim. Em ti. E tudo, ou nada, me conduz a isso. Gosto mesmo de encontrar você assim. Em mim. Desfaleço-me perante a ti. Talvez eu. Talvez nada. Entre talvezes e aindas muitos se perdem. Eu me perco. Cansei de lutar. Floresceu, amor, floresci. Rompem-se as cascas. Malaxofobia. Mas não espere nada de mim. Venha buscar pessoalmente.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Cedo demais

E o via comer e isso me deleitava mais que meu próprio prato, mera cacofagia perto de seus traços e gestos. Mastigar lento, calmo, pousou a mão na minha, a levantou outra vez, pegou o copo, afagou minhas maçãs agora com dedos frios. Volte a comer, eu disse. Ele sorriu daquele jeito que faz meus átrios quase explodirem. Diástole. Passou a mão de leve nos cabelos, a língua no canto da boca, naquele instante esqueci de comer respirar viver e o tempo parou e eu o contemplei como se gravar seus riscos e contornos fosse essencial, no sôfrego desespero de quem vê o ponteiro se movendo, sempre rápido demais, E meu prazer era ver como seus olhos, tão azuis,  se moviam de encontro aos meus, como às vezes tamborilava na mesa, ria de alguma piada esquecida. O gelo do meu copo derreteu, mas eu ainda só olhava inebriada. E desejei que ele acabasse logo. De repente faminta. O tempo continuava parado enquanto eu o via se movimentar, se levantar, me abraçar como se o mundo fosse acabar, tomar meu queixo e sussurrar baixinho. Estou com mais fome ainda. Eu também, meus olhos gritaram em silêncio. Talvez tenham se passado décadas desde que emergi naquela piscina azul. Mas agora os observo de cima. Eu era a dona dos braços brancos apoiados acima dele. E novamente eram só sombras e esboços. Pintaríamos um quadro. E devaneava enquanto desenhava seu rosto, seus braços, seu peito, seu. E não havia mais nada, não éramos mais nada, éramos tudo, éramos fogo, éramos cinza, éramos um só. E parei em suas expressões, nos músculos tensionados, nos arquejos e arfares, no calor. Parei enquanto tudo girava e nos agarrávamos apertado até que gritássemos sufocado e nos abraçamos ouvindo búfalos em nosso peito, sentindo nossos corpos esguios e escorregadios, um só. E assim ficamos e talvez tenhamos adormecido vivido morrido dessa forma. Dentro. Mas os ponteiros não pararam comigo e tudo foi rápido demais, fica tarde cedo demais. Mas ele me olhou daquele jeito que me inunda e me encontra e me vê por baixo das capas e me disse calma, amor, calma que o sol sempre nasce de novo, sempre brilha de novo, sempre recomeça. Amanhecemos.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Apelo

Me leve, me arraste, me puxe, me envolva, me cegue, me queime, me quebre, me jogue, me pegue, me amasse, me abale, me cale, me aperte, me desperte, me abrace, me enerve, me beije, me inebrie, me incendeie, me ganhe, me enlouqueça,  me conserte, me engrandeça, me mime, me aproxime, me toque, me acalme, me lasque, me queira, me perdoe, me aceite, me beba, me vicie, me abra, me segure, me cure, me descubra, me use, me lambuze, me retalhe, me cheire, me aprecie, me amacie, me desvende, me coma, me chame, me cerque, me afogue, me adule, me eleve, me pire, me atire, me roube, me use, mas não me solte, não me solte, não me deixe, não me esfrie, não me esvazie, não me desvaire, não me fujas, e se fugir, que me leve, me leve, me arraste, me puxe, me envolva.

Mais uma dose, por favor.


...e cada tempo, cada espaço, cada sopro é preenchido pelo vazio que há muito me dominara e as sombras, velhas companheiras, voltaram a espreitar, meus passos, antecipando meus gestos, embaralhando fragmentos de ideias, revelando minha natureza impulsiva, extremista, exagerada, exigente, sempre me sentindo isolada, não que isso importasse agora, na verdade nunca chegara a incomodar realmente, a opinião alheia sempre fora algo banal e a roda viva da sociedade desenfreada me fizera sentir alienada e um tanto peculiar diante aqueles que deveriam ser meus iguais, mas que não podiam diferir mais do meu modo louco de ver as coisas e assim julgá-las e vivê-las e tomá-las e entre elas me esgueirar desbravando o dédalo caótico de meu ser que é, agora mais que nunca, meu refúgio, abrigo, guarida nos dias grudentos e suarentos de verão onde pestilências nos assolam das manhãs febris até as noites pegajosas, nas madrugadas insones e insanas onde o nada se torna o tudo e perco o tudo nessa piscina de nada, nas longas tardes de inverno onde, encolhida no cobertos azul, presente da minha avó,  e que agora me deixa tão nostálgica , leio um livro e assim adormeço, entorpecida pela realidade que não é minha mas que mesmo assim eu tomo e embalo porque a ilusão e o apego fazem parte de mim,  assim busco uma forma de amansar aquela fera presa entre os emaranhados de meu peito, uma confusão tamanha que me perdi ali e nunca me dei o trabalho de ir me caçar, assim, perdida, fico mais confortável, o perder-se me acompanha desde meus primeiros passos, já errôneos e minhas primeiras palavras incontidas e petulantes, palavras que desencadearam em mim um ardor sem igual, palavra que move, aquece, modifica, transforma, reforma, arrasta, enlouquece, inebria, inebria como aquelas mãos que em minha pele deixam rastros de fogo, impulsos, desejos, ah, quão animalescos somos, esquecemo-nos, surtamos, perdemo-nos entre braços e abraços e carícias e afagos e contos e versos e canções e verões e num ápice nos consumimos e eclodimos e fechamos os olhos como quem pausa uma cena, rebobina a fita, assim reviro uma, duas, três, mil vezes mais minha memória, já tão ferida, na vã tentativa de reter um tempo que não mais voltará e o faço mesmo sabendo o quanto irá me machucar e assim me cego, piro e vou indo, levando, tocando, um dia rock, outro soul, i’m a country girl, faço moda, faço nada, faço birra, faço amor, selvagem é a realidades desses feitos, selvagem é o que somos, selvagens, loucos de pedra, carentes, descontrolados, perversos, reversos, e sim e não e sobrevivemos mais uma segunda-feira, empurrando até a sexta, levando a hipocrisia um pouco maia adiante e nos entregamos a devaneios tolos, queremos fugir do real e sentir o desapego abrasador mas não adianta ela ruge ela quer nos devorar ela avança na calada da noite ela puxa meus pés, me sacode, me descobre, me deixa nua diante de sua crueza, ah, a realidade não poderia ser mais severa e por isso me enveredo nesses caminhos, nessas estradas pouco gastas, nessas rotas longínquas para longe de tudo, longe de ti, longe de mim, e cada vez mais perto do vazio absoluto, me afogando nesse deserto, nessas águas imóveis que relutam em levar tudo isso para algum lugar distante, onde não possam mais me atingir, me alcançar com essas lembranças afiadas enquanto eu afundo nesse vasto triângulo de desesperos e assim, submersa, me aproximo do que seria a verdadeira chance de ser inteiramente feliz, a solidão total, só não experimentando o amor e seus apelos é que não se conhece a dor, só vivendo o vácuo para não sentir o dilaceramento causado pela falta, pela abstinência, e enquanto tudo isso não se encaixa eu vou pedindo mais uma dose, mais uma dose, por favor...

Serpente


Me parto, me mordo, me absorvo, na vã tentativa de expurgar esse demônio que habita em mim. Minhas vísceras ardem e me reviro em busca de um remédio, ou veneno. Oh por quê? Deixo Stanislavski de lado e dou meu melhor lado shakespeariano. Não, não, não, isso me rasga e devora e subtrai de mim todo meu fôlego e que vertigem. Tem um cigarro aí? Uns solos de guitarra, um deck escuro, rum para eu me sentir um pirata. Agora preciso de algo para eu ocupar as mãos: você. Mas novamente elas voltam e me arranham e as marcas estão no meu corpo que não é meu e sim seu, na verdade não existe mais nada nem meu nem seu, é nosso suor, são nossos braços, nossos gemidos, quase gritos, te aperto então desesperada, por favor, me tome, me consuma, não saia mais de mim porque tudo é frio quando não estamos assim, envoltos em líquidos e risos. Me enrosco em ti e assim deixemos o amor fluir. Ou a volúpia. Nessa noite não vejo muita diferença. Fiquemos com os dois por hora. Deixe-me então adentrar em teus olhos porque elas me perseguem, deixe-me fugir de tudo contigo, venha, venha, musa rodriguiana sou, eu sou capaz de tudo, não sou capaz de nada, deixe-me ser sua nos fogos de beltane, me tome como tua, me tenha como se fosse a última vez.. Mas se apresse ah aí, por favor, elas sufocam, mas nossos suspiros e movimentos podem mantê-las longe, as sombras, elas que vivem nas casuarinas, que cantam sinistramente uma música medieval há muito esquecida, talvez seja Morgana quem as toque, talvez o bardo aleijado, por falar nisso, não, não, não é nisso, mas você me remete a tudo e tudo me remete a você, meter, e não é isso que estamos fazendo nesse momento anacrônico? Você em mim e meus laços em você, mas não é disso que eu estava falando, na verdade é disso sim, a questão é que nada é mais lindo que teus braços brancos te apoiando acima de mim e teus olhos perscrutando meu rosto desvairado como nenhuma serpente faria porque esse veneno é só seu. Então me engula, me pique, me mate, mas não saia de mim.

O sol se põe às 6


Meus cacos, avulsos, espalhados no chão.
Repulso.
Te expulso.
Querendo te tomar pela mão.
Resisto.
Desisto.
Meu peito, convulso,
Me faz, de impulso,
Te tomar pelos pulsos,
Te  jogar nesse chão.
Entre meus cacos.
Agora nossos inteiros.

Mas não solta não

Eu sou um rio.
Sou uma torrente.
Sou vertigem.
Sou latente.
Sou um curso.
Uma semente.
Sou fogo.
Sou nada.
Sou envolta por essa coisa.
Isso que flui de mim.
Desemboca em ti.
Transborda em nós.
Ata com força nossos nós.
Essa coisa que me aperta.
Que se inquieta.
Que jorra de mim.
E se atira em ti.
Sou esse coração bobo.
Coração que se esvai pelos meus dedos.
Pegue minha mão.
É teu.