quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Limiar

Gosto de pensar que sou para sempre o último dia de inverno. Meu contentamento começa no solstício. Frio que favorece orgias. Adoro meus deuses gelados, desperto minha fé fria e crua retalhando essa minhalma efêmera.  Assim caminho entre meus restos escuros, com meus impulsos e exageros, pautada por dramas. Sempre rumo ao equinócio, sempre no limiar, mas nunca além. Meus dedos roxos apertam xícaras quentes contra minha alma fria, agora são dedos quentes que passeiam por mim, pequena flor fraca e nua esquecida no gelo. Estremeço com esse intruso em minha solidão, não se preocupe com minhas feridas abertas a mostra nesse corpo despido de máscaras e falsas alegrias, deixo no chão meus rosto e restos e danço e me enrosco, me revirando nessas chamas brancas. Para sempre o último dia de inverno, para sempre dançando esse balé frenético de corpos em um só calor. Um só. Mas a verdade é que me acostumei ao vazio e encher essas minhas talhas já tão ressecadas dói demais, percebo-me então partida, meus destroços geometricamente espalhados no teto, me espreitando. E novamente vem o intruso, desaguando em mim mais do que queria beber, despertando em mim uma sede que beira, não, ultrapassa o desespero, assim me parto mais uma vez rumo a tua voz, te sorvo e te quebro só para fazê-lo caber todinho em mim. E imploro para que me sorva e me quebre só para fazer-me caber todinha em ti. Somos só espectros, só lendas perdidas em ruínas de pó, lendas  talhadas em borra, lendas sussurradas no escuro enquanto o frio ferve e já não temos nada, só a palpável voracidade com a qual nos tomamos, competindo com os ponteiros, fugindo de tudo, só nós dois. Desconsiderando tudo o que há em mim, dou de cabeça nessas construções sem esquinas, nesses becos sem saída, afugento-me nessa crisálida apertada, mas fugindo das vespas não vejo o botão que se abriu. Metamorfoseio-me então, retraio todos os meus pedaços até formar um só, até não sobrar nenhum, mórula inversa. Pelo medo do excesso peco pela falta. As cores começam a apontar no jardim, mas estou presa aqui, na véspera, nunca adiante, nunca transpasso, não sigo em frente, fantasma. Aprisionei-me em meus laços, em meus nós, em nós. Rastejo então sozinha e cega bato em tua carapaça, te rompo. E longe das armaduras somos só corpos moles e sensíveis em cada seguimento. Ainda falta-me uma parte. Não metades, não laranjas, mas sim uma peça desse confuso jogo que me forma. Ignorando meus medos convido-o a entrar nessa roda, em minha roda. Beba-me. Sofra essa última taça bem devagar. Sacie-se em mim. Invada meu inverno e espero comigo, espere que um dia chega, espera que plantei aquela coisa verde, como se chama? Espera que ela floresce, espera que a gente floresce também. Enquanto isso me inteire nesses leitos secos, nessas margens pobres, nesses versos sem rumo. Enquanto isso se some a mim, não temos sentido nem direção, mas se perca em mim, vetor sem nexo. Vem pra dentro (de mim) que o fim do inverno começou.

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