segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Trocaram as luzes da rua


Por Alice Samute
  Trocaram as luzes da rua. Não percebi. Já passava das cinco. Meio de setembro. Olhei pela janela. Céu decaindo pro cinza. Olhei pela outra. Dourado pôr do sol. Dourada alegria incidiu em mim. Me veio a cabeça bancos em ruas de pedra, pilhas de folhas secas, árvores peladas esticando seus braços para louvar ao Rei. Mas não havia nem sol nem pôr. Somente as novas luzes da rua que refletiam na vitrine de salgados do bar da esquina. Mas sentada no sofá desbotado, coberto por aquele horrível lençol furado, eu podia jurar que havia um sol lindo sorrindo só pra mim.
  Trocaram as luzes da rua. Já passava das nove e esticando os pés podia ver por cima do muro do quintal, a rua dourada de sol que não era sol, mas sim as novas luzes da rua. Novamente sorri porque havia na minha rua um sol só pra mim. Senti que teria para sempre uma rua de outono só minha. Senti que ficaria ali parada olhando meu sol sem sol se pôr e entrar por meus caixilhos fechados. Senti que poderia viver daquele sol sem sol porque nascia então um novo sol dentro de mim.
  Trocaram as luzes da rua e entre um afazer e outro, corria para ver as casas douradas pelo falso sol. Trocaram as luzes da rua, trocaram meu sorriso, trocaram as minhas luzes também. Enquanto houvesse aquela rua amarela, haveria uma chama em mim. Eu era então uma vela acesa solta no vento. Rezando para permanecer. Rezando para minha tenuidade ser eterna. Rezando para aquele sol sem sol não se pôr sem mim. 
  Pelas frestas e falhas da porta velha eu via o laranja me chamar. Havia até uma folha seca entrando para me convidar para uma dança no sol. Me convidando para ser também uma nova luz colorindo a calçada desforme. Tive certeza de que poderia atravessar a porta sem abri-la. Assim como poderia haver lá fora um sol sem sol. Corri sem que meus pés tocassem o chão. Corri e te gritei. Te implorei para que me deixasse trocar também as luzes de tua rua. Para que deixasse meus castanhos encherem tua vida com minha chama. 
  Olhei pela selva do meu quintal e vi o sol se pôr no breu. Vi o sol sem raio, sem calor, sem vida, clareando as fachadas dos prédios, clareando os pensamentos soturnos que invadem as camas, clareando os amores, as dores, clareando a chuva que agora escorre de mim.
  Me deixei vagar pela rua dourada. Meus pés ainda estavam parados em frente à porta com as frestas iluminadas. Me deixei parada ali e vaguei pelas luzes, pelas marcas de cuspe no asfalto que poderiam ser estrelas opacas surgindo no fim da tarde. Vaguei enquanto chovia, vaguei enquanto dentro de mim escurecia. E não importava mais se haviam trocado as luzes da rua, se haviam trocado as luzes do mundo. Não importava mais porque em mim havia um bocal queimado, bocal enferrujado. Em mim havia uma boca seca, uma vida azeda, uma veia preta. Não importava mais porque enquanto trocavam as luzes da rua, as minhas iam se extinguindo. Eu sabia que logo chegaria a hora. Sabia que logo iria apagar. Meu corpo parado à porta não passava de cera comida.
  Me bateu um desespero quando te vi no escuro recortado pela luz do meu pseudo sol. Corri ao teu encontro, mas meus pés não saíram do chão. Gritei em teus ouvidos, mas minha voz sucumbira junto a minha chama, agora tênue sopro que escorria dos gentis lábios de cera. Meus braços me pareceram pesados demais para abri-los e te abraçar. Mas você entendeu mesmo assim. Você abandonou a rua eternamente iluminada e veio pro meu breu. Você trocou o calor do sol aprisionado em bolotas de vidro e veio me ter no negro. Você abandonou a falsa luz e se abandonou em mim. Você sabia que eu, só eu, poderia te dar essa luz que tanto ansiou, que tanto buscou mesmo sem saber. Quando te vi solitário, talvez naquele momento, talvez meses atrás, eu soube que mesmo não sabendo de nada, eu sabia que deverias ser meu. Sucumbi então em teus azuis pulsantes, penetrei teus poros, me fundi à tua pele.
  Por alguns segundos, séculos ou piscares de olhos, houve no breu uma luz mais forte que as novas luzes da rua. Houve um sol sem sol que saía de mim ou quem sabe de ti, que tecia os nós, que nos fazia nós.
  Trocaram as luzes da rua, mas quem ligava para isso agora. Agora que eu sabia que sempre encontraria minha luz em ti, que sempre haveria para ti luz em mim. Que enquanto estivéssemos a sós sempre haveriam nossos sóis. 

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